Professora e antiga aluna da Universidade de Aveiro (UA). Investigadora e membro do Conselho Executivo da Federação Europeia de Materiais (FEMs). Paula Vilarinho crê, a partir de momentos como a crise pandémica, que a “universidade, como centro gerador de conhecimento, criatividade e inovação, poderá liderar este processo de transformação da sociedade”.
Como define um bom professor?
Difícil …
Olhando para trás, para os que mais me marcaram, lembrando alguns colegas que são oradores natos e que sempre que proferem uma palestra me inspiram, considerando as reações dos meus estudantes e … olhando para a frente, tentando vaticinar o que será o educador do futuro, aquele que vai enfrentar a Geração Z … para mim, um bom professor deverá ser polivalente e:
- dominar a matéria que leciona;
- transmitir com clareza e criativamente (ser um bom comunicador);
- estimular a criatividade, a análise e a assunção do risco;
- inspirar;
- ser íntegro;
- estar comprometido;
- saber ouvir;
- ser um excelente “treinador”.
O que mais a fascina no ensino?
Ver os alunos, no meu caso, jovens adultos, que serão os futuros engenheiros deste país (… e do mundo), crescerem / amadurecerem / ganharem confiança neles próprios, tornarem-se críticos e criativos e entenderem que são detentores de um potencial enorme; esta é sem dúvida uma experiência única e, para mim, altamente gratificante.
Tenho uns quantos casos que demonstram bem esta experiência, mas há um deles que não poderei esquecer nunca.
Algures no tempo, aparece nas aulas de 3º ano um aluno, com um ar de “surfista” (que na realidade ainda hoje é), de calções, “havaianas”, cabelo amarrado, sem nada nas mãos, para além dos headphones; senta-se na última cadeira do anfiteatro e nas primeiras aulas, provavelmente apenas no mundo dele; à medida que as aulas foram decorrendo, o referido aluno foi descendo nas filas do anfiteatro e, no final do semestre, sentava-se na primeira fila … a indumentária continuava a mesma. Passamos ao 4º ano / 2º semestre e o referido aluno entra na sala, mas desta vez completamente transformado, totalmente irreconhecível … perguntei … o que aconteceu? E a resposta foi … por sua causa agora vou ser engenheiro e tenho de me preocupar com as notas e também com o meu aspeto … . Alguns anos depois recebo um email, dando-me conta da sua subida de posição na estrutura da empresa e, claro, da continuidade do surf …
Para além de Professora, é antiga aluna da UA. Que boas recordações guarda do tempo de estudante?
Sim alumna da UA. Na altura do Departamento de Engenharia Cerâmica e do Vidro, atual Departamento de Engenharia de Materiais e Cerâmica (DEMaC).
Muitas, mesmo muitas e muito boas … um tempo incrível e inesquecível … a turma (13 rapazes e 2 raparigas …) e a sua união e camaradagem … alguns professores, absolutamente inspiradores e que marcaram a minha vida para sempre … tempo! tempo para tudo … estudar, namorar, conviver, conversar horas sem fim, viajar, ensinar …, as visitas de estudo e uma em particular, que me fez logo nessa altura tomar consciência da condição feminina e da minha opção por um curso de engenharia.
Um dia fomos com um professor do Departamento visitar uma indústria na região. Muito bem recebidos, por um diretor / administrador e que, a certa altura, antes da visita se iniciar, olha para as tais raparigas e pergunta … num curso de engenharia? senhoras? para fazerem o quê numa fábrica? … dizem que sou rebelde, provavelmente é verdade (… talvez meia verdade …), mas nesse dia não houve visita para mim, não entrei e fiquei na rua à espera que a visita acabasse … foi a única forma que encontrei na altura de repudiar, algo que ainda não sabia bem o que era, mas que de todo não posso aceitar, a descriminação com base no género … ainda bem que hoje não é mais possível fazer esta pergunta e, acima de tudo, pensar desta maneira!
Se quisesse dar um conselho aos seus alunos, que conselho daria?
Daria … dou frequentemente alguns (mas não sei bem se me ouvem …) … talvez … ouvir e ouvir muito, mas antes de agir, pensar e seguir a sua intuição.
Mas claro, trabalhar muito! Acredito que o que nos distingue é o conhecimento. Acredito que a inspiração pode ajudar, mas a concretização está diretamente relacionada com o esforço, a dedicação e a determinação. A excelência não é um acidente de percurso. É o resultado de uma intenção, de esforço, e de concretização inteligente, apoiada em escolhas e não no acaso.
A este propósito, lembro-me de uma interessante definição de liberdade, que estava espalhada, em “letras garrafais”, no campus de uma das universidades norte americanas onde fiz uma das sabáticas, e que do meu ponto de vista, se relaciona com a necessidade de tomar decisões … a liberdade começa com a capacidade de dizer não (… Freedom starts with a no …).
E no fundo, eu acho que os meus alunos também o sabem.
Houve alguma turma que mais a tivesse marcado? Porquê?
Sim. Há sem dúvida turmas / momentos que são diferentes e que, de uma maneira ou de outra, nos marcam e ficam na nossa memória para sempre. Vou mencionar duas turmas, por razões muito distintas.
A primeira turma que lecionei quando comecei a dar aulas na UA. Uma turma de aulas práticas, só masculina (cenário este que não se voltou a repetir), com alunos quase da minha idade, e com quem partilhei a minha inexperiência letiva, tendo vivido momentos no laboratório únicos, alguns hilariantes e outros até caricatos; hoje reconhecidos e respeitados Engenheiros na nossa indústria, alguns dos quais com quem ainda mantenho contato.
A segunda é uma turma atual. Turma esta composta por um grupo de estudantes (… que leem livros de papel e capa dura !!! …), cujo interesse em aprender e a resposta ao desafio e à quebra do estabelecido, são dignos de realce e que têm estado sempre disponíveis para novos desafios; prevejo um conjunto de atores que poderão contribuir para mudar o cenário da indústria e da inovação nacional e até internacional …
Pode contar-nos um episódio curioso que se tenha passado em contexto de sala de aula ou com estudantes?
Em tantos anos de lecionação, há sem dúvida uns quantos episódios, dentro e fora da sala de aula, que fazem parte do meu portefólio de experiência de ensino. Mas vou referir um recente.
Numa aula de uma unidade curricular de 4ª ano, há uma aluna que me aborda e pergunta se um colega, de um outro ano, poderá assistir à aula desse dia. As minhas aulas são totalmente abertas e para mim é muito interessante ter aulas assistidas, e, como tal, disse imediatamente que sim. O referido colega / aluno assistiu à aula com atenção e interesse. No final, não resisti a perguntar qual a razão de tal interesse, quando percebi que se tratava de um aluno de 1º ano, que pretendia saber, se a sua opção por ciência e engenharia de materiais estava certa ou não … nunca tal me tinha acontecido …
Fora do contexto de aula, há um recorrente contato com ex-alunas para discussão de assuntos relacionados com a condição feminina e a prática de engenharia.
Foi diretora da licenciatura em Ciência dos Materiais da UA e será (se aprovado pela A3Es) diretora do Mestrado em Manufatura Aditiva também da UA. Como qualifica a formação que é dada aos estudantes na formação de primeiro ciclo e noutros cursos a que está ligada?
De uma forma geral, de elevada qualidade. Em termos de ciência e engenharia de materiais considero a formação universitária dada pela UA muito boa e, completamente ao nível da formação ministradas nas melhores escolas de engenharia de materiais do mundo.
A minha resposta baseia-se, não só na minha experiência como diretora de curso, mas também na prática de preparar, desde há muito, dossiers para diferentes momentos de avaliação (A3Es, Ordem dos Engenheiros, entre outros) e de criar / propor novos cursos, como este recente curso de Mestrado em Manufatura Aditiva, que esperamos que seja, em breve, aprovado.
A necessidade de preparar elementos para avaliação, obriga a uma coleta e análise profunda de dados e à sua comparação, com o que se faz a nível nacional e internacional. Constituem igualmente ocasiões privilegiadas para ouvir os empregadores dos nossos estudantes. Em súmula, são momentos que nos dotam de uma visão muito detalhada e comparativa da formação superior que ministramos. A experiência recente vivida como Presidente da Sociedade Portuguesa de Materiais (SPM) e a que vivo atualmente como membro do Conselho Executivo da Federação Europeia das Sociedades de Materiais (FEMs) e a, consequente exposição ao que se faz em Materiais em Portugal e no Mundo, juntamente com a minha vivência em universidades inglesas e americanas, apoiam mais ainda a minha afirmação – o que fazemos é de elevado mérito.
Tendo dito isto, há sempre espaço para melhorar e atualizar.
Nós professores, ensinamos agora a Geração Z (dos post millenials), geração para a qual os “social media”, a conectividade constante e o entretenimento e comunicação à medida, são comodidades assumidas. Crescer num ambiente tecnológico “sempre ativo” afeta marcadamente a forma como os estudantes aprendem e a forma como ensinamos. No entanto, “Se o homem do século XVIII nos visitasse hoje veria mudanças surpreendentes nos transportes, nas comunicações e na medicina, mas ele reconheceria imediatamente os métodos de ensino. A forma como os alunos aprendem hoje é como aprendiam há mais ou menos 200 anos”. Estas palavras não são minhas (Anne Grocock 2002), mas revejo-me nelas integralmente. Para mim, como docente, há uma necessidade premente de mudança “da forma” como ensinamos.
Prever é difícil, mas julgo que iremos evoluir no sentido de um ensino / aprendizagem mais focados no aluno, baseados em experiências imersivas, com perspetiva verdadeiramente internacional e interdisciplinar (sem fronteiras disciplinares), misturando métodos de ensino tradicionais e não tradicionais (um pouco no sentido da procura e resposta 24 sobre 24 h). Um exemplo interessante seria uma “Fábrica de aprendizagem”, no âmbito da qual de uma forma interdisciplinar, interdepartamental (… e até internacional) e envolvendo a indústria, se traria, nos cursos de engenharia, o mundo real e futuro para a “sala” de aula. Julgo que no futuro as universidades serão cada vez mais um lugar para colaboração, diálogo crítico, empreendedorismo e aprendizagem ao longo da vida.
Diz-se que as universidades, como organizações clássicas, fortemente burocratizadas, são instituições “pesadas”, com dificuldade em responder a desafios em tempo útil. É capaz de ser verdade. No entanto, a experiência única por que acabamos de passar (com esta imposta quarentena) e a (inimaginável) capacidade que tivemos, de numa semana passarmos de um ensino totalmente presencial (como no meu caso), para um ensino totalmente remoto, é digna de realce e vem provar precisamente o contrário, ou seja, a flexibilidade das universidades.
Estes momentos fazem-me crer que a universidade, como centro gerador de conhecimento, criatividade e inovação, poderá liderar este processo de transformação da sociedade, mas para tal, deverá ser mais flexível e mais laboratorial, quero dizer, mais experimental e, acima de tudo, destemida.
Eu gostaria muito que a minha universidade fosse pioneira neste processo transformativo…!
Como vê a formação nesta área da UA face ao mercado de trabalho?
Como muito promissora. A taxa de empregabilidade dos licenciados e mestres em Engenharia de Materiais é muito elevada. A crescente consciencialização por parte da indústria da importância do conhecimento e de gerar inovação, é um garante para os formados nos diferentes níveis (licenciatura, mestrado e doutoramento) em materiais.
Como dizemos, um engenheiro de materiais responde ao triângulo de conhecimento: estrutura / composição – processamento / manufatura – design / funcionalidade / propriedades, para as diferentes classes de materiais (cerâmicos e vidros, compósitos, metálicos e polímeros); ou seja, reúne as competências necessárias para “desenhar” / desenvolver / produzir qualquer tipo de material, para qualquer aplicação. É difícil imaginar um mundo sem materiais. As aplicações dos materiais são infinitas (… e isto levar-me-ia a uma narrativa longa, repleta de exemplos …), bem como a necessidade de os desenvolver e por arrasto, igualmente, a função do engenheiro de materiais … = infinita.
A resposta aos grandes reptos à humanidade, como as medidas preconizadas no Acordo Verde da Europa (The Green Deal), para uma Europa com zero de emissões de gases de efeito de estufa, com um crescimento económico dissociado do uso de recursos e totalmente inclusiva, passam também pelos materiais. Como parte de uma cadeia de valor, os materiais vão juntamente com tecnologias facilitadoras chave, como a nanotecnologia, biotecnologia, tecnologias de manufatura aditiva e tecnologias da informação, permitir responder a estes desafios.
Tendo em conta a sua experiência à frente da Sociedade Portuguesa de Materiais, e agora membro executivo da Federação Europeia de Materiais (FEMs), quais lhe parece serem as áreas que terão maior desenvolvimento nos tempos próximos e que poderão vir a garantir mais emprego aos formados na UA?
É deveras difícil responder a esta pergunta. Num quadro de instabilidade global como o que vivemos hoje, mais difícil ainda. Mas em termos de tecnologia, as tendências apontam para:
- forte (tentada a dizer rápida) implantação de tecnologias de manufatura aditiva a nível industrial, de uma forma mais ou menos transversal a todos os setores da área de materiais;
- processos industriais conducentes à redução dos gases de efeitos de estufa;
- processos “integralmente” circulares;
- digitalização industrial (indústria 4.0 e indústria 5.0);
- processos à base de recursos alternativos, renováveis e abundantes;
- inovação na área do produto, por recurso às tecnologias facilitadoras como as nanotecnologias;
- entre outros
Por outro lado, julgo que a empregabilidade de um futuro engenheiro passará também, para além de conhecimentos técnicos sólidos, pela sua capacidade para inovar, para se adaptar à mudança frequente e aos novos modelos de negócio em parceria.
Esteve envolvida na tentativa de criação e uma empresa que propunha novos materais para chips de melhor desempenho. Ainda pode haver inovação nesta área envolvendo novos materiais? Tem pistas nesse sentido?
Sim. Desenvolvemos o MIMEX – memórias ferroeléctricas não voláteis de baixo custo.
A nossa solução, com uma tecnologia patenteada, baseia-se no processamento de materiais a baixa temperatura e na possibilidade que dai advém de alterar a integração da memória no circuito integrado; como resultado envolve uma redução de custos de cerca de ~30 %. Na época e no âmbito do programa COHiTEC (agora HiTech) caracterizámos a nossa proposta de valor e definimos a nossa pipeline de produtos, que começou com os RFIDs (radio frequency identifiers), sendo estes seguidos de sensores e cartões inteligentes até à eletrónica flexível.
E é aqui, precisamente na área da eletrónica flexível e impressa, que reside agora um dos grandes interesses e oportunidades para os materiais com aplicação na eletrónica. A eletrónica flexível abre portas a um leque alargado de aplicações, não possíveis até agora e de mais baixo custo. A eletrónica flexível será um bom exemplo da inovação frugal (ou engenharia frugal,) como o processo de reduzir a complexidade e o custo de um bem e da sua produção, sem detrimento do seu desempenho. A flexibilidade e a necessidade de imprimir (para embutir) levantam grandes desafios do ponto de vista de materiais; para além da otimização das propriedades elétricas dos materiais flexíveis e dos seus ciclos de vida, há necessidade de desenvolver tecnologias capazes de compatibilizarem materiais de natureza distinta e capazes de os imprimir com diferentes dimensionalidades e sobre diferentes materiais. Os nossos estudos recentes, também com base na tecnologia desenvolvida para o MIMEX, centram-se precisamente nesta área.
Como contextualiza os avanços da investigação feita na UA e em Portugal a nível internacional?
Muitos e muito bons, quer na UA, quer em Portugal. Apesar da dimensão pequena da investigação portuguesa, com um investimento em I&D previsto de 1.8% do PIB em 2020 (fonte FCT) (bem longe ainda da média europeia, que foi de 2,1% em 2015), falta de massa crítica em muitas das áreas, dificuldades de aquisição de grandes equipamentos e ausência de uma estratégia e política cientifica estável e a longo prazo, os desenvolvimentos nos últimos 10 – 15 anos, são notórios. O número crescente de doutorados e o número de publicações científicas indexadas no Science Citation Index (> 270 000 publicações entre 1990 e 2020) e suas citações, são alguns dos indicadores inequívocos do bom desempenho do sistema científico nacional.
A investigação feita na área dos materiais, em particular no CICECO da UA, é sem dúvida excelente, como atesta a última classificação FCT e as provas estão à vista. Sendo o maior instituto português (no entanto, de verdadeiro cariz internacional) em matéria de Engenharia e Ciência dos Materiais, tem como missão desenvolver a base de conhecimento científico e tecnológico necessária para a produção e transformação inovadora de materiais cerâmicos, híbridos orgânicos-inorgânicos e materiais para um desenvolvimento sustentável. Com linhas de investigação nas áreas de Tecnologias da Comunicação e Informação, Energia e Aplicações Industriais, Sustentabilidade e Saúde e Computação e Modelação, a excelência do CICECO, tal como salientado pelo último painel de avaliação, reside na equipa – conhecedora e motivada, na sua natureza multidisciplinar e boa organização da investigação, na evidência do claro impacto da investigação – tanto da pesquisa fundamental como aplicada, na elevada competitividade para atração de financiamento europeu e na excelente ligação com a indústria e estratégias de comercialização, incluindo a transferência de tecnologia.
Paula Vilarinho adora viajar e fotografar no seus tempos livres
IMPRESSÃO DIGITAL
Traço principal do seu carácter…
Franqueza
Mas, segundo os mais próximos, determinação
Ocupação preferida nos tempos livres…
Viajar e fotografar
O que não dispensa no dia-a-dia…
Em tempos de quarentena … 30 min de yoga matinal antes do que quer que seja …
Em tempo normal … o pequeno almoço com o marido, sempre que estamos juntos …
O desejo que ainda está por realizar…
Oh! são tantos! … talvez … ver o resto do mundo que falta ver …